A utilização da Taxa Referencial – TR, como índice de correção monetária (prevista na Constituição Federal e no art. 1º-F da Lei n. 9.494/97), recentemente, foi rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal – STF, por conta do julgamento das famigeradas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4.357 e 4.425 (ADIs 4.357 e 4425), no que tange à sua aplicação para a atualização monetária dos valores que já estivessem em precatórios (sistema utilizado pelo Poder Público para pagar suas dívidas decorrentes de ações judiciais), a partir de março de 2015.
Embora se tenha decidido a matéria em relação aos “precatórios”, (o Poder Público alega que) não se resolveu, ainda, em relação às demandas judiciais que estão em trâmite e que, portanto, ainda não chegaram à fase da expedição do “precatório”. Naturalmente que em qualquer país mais sério do mundo, a solução dada para a primeira situação já seria imediatamente aplicada para a segunda, haja vista que se o entendimento vale para a situação mais “avançada” do processo (o momento de expedição do precatório, quando, em tese, não cabe mais discutir o que foi decidido) é consectário lógico que deverá servir também para os estágios precedentes, haja vista que nestes ainda se pode discutir o “mérito” da ação.
Infelizmente, há algum tipo de cultura inerente a nós, brasileiros, no sentido de sempre burocratizar (ou “enrolar”) o máximo possível, para, quiçá, sempre sermos o “país do futuro”. Daí que a mesma discussão travada nas ADIs 4.357 e 4425 está, de novo, no STF, agora nos autos do processo do Recurso Extraordinário 870947[1].
Pois bem, lamentações à parte quanto à nossa incapacidade de sermos minimamente desenvoltos, é certo que a lógica jurídica já firmada pelo STF prevalece: a conclusão dos Senhores Ministros é a de que a TR não reflete a desvalorização da moeda, pouco importando a que período estejamos nos referindo, se ao momento anterior ou posterior à emissão dos precatórios.
É imperioso ressaltar, aliás, que, há longa data, já havia se decidido assim, por aquela Suprema Corte, no sentido de que a TR não serve como fator de correção monetária, veja-se:
Ação direta de inconstitucionalidade[...] - Ocorrência, no caso, de violação de direito adquirido. A taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda. [...]. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 18, "caput" e paragrafos 1 e 4; 20; 21 e paragrafo único; 23 e paragrafos; e 24 e paragrafos, todos da Lei n. 8.177, de 1 de maio de 1991.
(ADI 493, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 25/06/1992, DJ 04-09-1992 PP-14089 EMENT VOL-01674-02 PP-00260 RTJ VOL-00143-03 PP-00724)
Entre os argumentos utilizados pelos Ministros, naquela época (em 1992! – vejam como, de fato, somos incapazes de evoluir nas discussões), está o de que havia enorme discrepância entre os valores apurados pelas taxas que mediam a variação dos preços no mercado (como o IPCA e o INPC) e a TR.
Tal discrepância permanece até hoje. O IPCA, v.g., em 2015, até maio, já somava 5,3388%[2], o INPC, 5,9861%[3], ao passo que a TR somava 0,45569%[4].
E essa divergência existe porque os índices se prestam a apurar variações distintas. Vejamos.
O IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), segundo o próprio IBGE[5], é o índice que tem por objetivo medir a inflação de um conjunto de produtos e serviços comercializados no varejo, referentes ao consumo pessoal das famílias, cujo rendimento varia entre 1 e 40 salários mínimos, qualquer que seja a fonte de rendimentos, a partir de preços efetivamente cobrados ao consumidor, para pagamento à vista. A pesquisa é realizada em estabelecimentos comerciais, prestadores de serviços, domicílios e concessionárias de serviços públicos.
O INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), por sua vez, avalia, grosso modo, os mesmos preços, porém para famílias cujo rendimento varia entre 1 a 5 salários mínimos[6].
A TR (Taxa Referencial), por outro lado, não avalia a variação de preços do mercado. Nos termos do art. 1º da Lei 8.177/91, ela é calculada a partir da “remuneração mensal média líquida de impostos, dos depósitos a prazo fixo captados nos bancos comerciais, bancos de investimentos, bancos múltiplos com carteira comercial ou de investimentos, caixas econômicas, ou dos títulos públicos federais, estaduais e municipais”. O cálculo, atualmente, se dá pelos moldes firmados pela Resolução 3.354/2006 do Banco Central do Brasil, da qual se extrai o seguinte:
Art. 2º A TBF e a TR são calculadas a partir da remuneração mensal média dos CDB/RDB emitidos a taxas de mercado prefixadas, com prazo de 30 a 35 dias corridos, inclusive, com base em informações prestadas pelas instituições integrantes da amostra de que trata o art. 1º, na forma a ser determinada pelo Banco Central do Brasil.
Note-se, a partir da leitura, que de maneira alguma a TR pretende recompor o valor da moeda. Ela procura estabelecer um preço de juros (juros esses remuneratórios e não compensatórios), atrelado à remuneração mensal média dos CDBs e RDBs emitidos pelas 20 maiores instituições financeiras do país (art. 1º da mesma resolução).
Pois bem.
O juro pode ter significação em vários campos do conhecimento humano, entre eles o da economia, da política e do direito, campos esses que estão intimamente ligados entre si.
Em economia, o mais amplamente conhecido, é a renda decorrente da utilização da moeda por terceiros, isto é, o detentor do capital priva-se de fazer seu uso imediato para receber uma remuneração pela utilização deste mesmo capital por terceiros – chamamos tal juro de remuneratório. Há, ainda, o juro compensatório, decorrente, justamente, da desvalorização da moeda, em sistemas econômicos como o brasileiro, nos quais ainda se sofre com os efeitos da inflação (que, em linhas muito amplas, é o aumento do custo de um determinado produto ao longo do tempo –, ou seja, a mesma quantidade de dinheiro compra menos produtos do que se comprava no passado[7]) e, por fim, temos o juro indenizatório, que é aquele pago em virtude do atraso no cumprimento de uma obrigação, isto é, em virtude da “mora” do devedor.
São três espécies que não se confundem e cada uma possui a sua particularidade.
Nos casos que envolvem débito discutido em ação judicial, grosso modo, há duas espécies de juros que são devidas, ambas decorrentes da própria lei: os juros compensatórios, que procuram mitigar a corrosão da moeda no período em litígio (art. 1º da Lei 6.899/81) e os juros moratórios, que tem por escopo indenizar a parte lesada e recompor o seu patrimônio pelo atraso no adimplemento de uma dívida líquida e certa (arts. 394, 395, 397 e 404 do Código Civil).
É fácil notar que a única espécie de juro que não se aplica no caso é justamente a espécie representada pela TR, a remuneratória.
A parte lesada não busca a remuneração pelo capital que lhe é devido. Busca, tão-somente, que o efetivo valor do dinheiro que lhe era devido há 5 anos, por exemplo, continue sendo o mesmo, em que pese a existência da inflação. Em linhas ainda mais simples, a parte lesada apenas pretende que o dinheiro que lhe garantia, no passado, adquirir 1 quilo de arroz continue lhe garantindo, hoje, esta mesma aquisição e não menos do que o tal quilo de arroz, ou nos dizeres muito mais poéticos do nosso e. ex-Ministro Carlos Ayres Brito[8]:
[...] que fique desde logo retida a noção de que, com a correção monetária, a Constituição manda que as coisas mudem ..., para que nada mude; quer dizer, o objetivo constitucional é mudar o valor nominal de uma dada obrigação de pagamento em dinheiro, para que essa mesma obrigação de pagamento em dinheiro não mude quanto ao seu valor real.
A correção monetária, pois, serve apenas para recompor o status quo ante, sem que reste qualquer prejuízo para a parte lesada, não ficando também agravada a situação do lesante, na medida em que só está se mantendo o efetivo valor da moeda, sob pena de se violar o direito de propriedade do jurisdicionado, protegido pelo art. 5º da Constituição Federal.
É elementar que o Poder Público respeite isso, haja vista que, além de ser ele próprio quem causou a injusta lesão ao patrimônio da parte, agora reparada pelo Poder Judiciário, também é ele quem é incapaz de dar uma prestação jurisdicional ágil, rapidamente, o que mitigaria os efeitos maléficos da inflação no tempo.
Para a solução desse tipo de lide, vale um dos mais famosos brocardos jurídicos: não pode a parte se valer da própria torpeza.
A propósito, não é porque o Poder Público consegue introduzir uma norma jurídica no sistema que diga que a “correção monetária será realizada desta ou daquela forma” que se poderá mudar a natureza ontológica do instituto. Não é possível prever a desvalorização de uma moeda de antemão. Esta é sempre calculada a posteriori, medindo-se a variação dos preços dos produtos. Qualquer metodologia diversa desta, não refletirá a “inflação do período”, e, por consequência, não será capaz de realizar uma efetiva correção monetária. O índice de correção deve corresponder ao que efetivamente se perdeu de “poder de compra” na moeda, de modo que não é possível ficar condicionado a esta ou aquela taxa arbitrária, totalmente desvinculada dessa variação de preço.
É como o exemplo citado por Ferdinand Lassalle, em sua obra mundialmente famosa “Que é uma Constituição?”, no qual escreve o autor:
Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: “Esta árvore é uma figueira”. Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiriam estes a fábula produzindo maçãs e não figos.
É idêntica a situação. Pode o Poder Público dizer que a TR recompõe as perdas inflacionárias de um período. Mas acontece que ela não recompõe, de fato, e acarreta danos à população, viola a propriedade dos seus cidadãos, constitucionalmente garantida, por cláusula pétrea (art. 5º, XXII).
Sim, há efetiva violação da propriedade, que é mais agravada quanto maior for o tempo para a solução do processo judicial.
Diz-se que a média de tempo para a Justiça solucionar um processo, no Brasil, é de 5 anos. Eu, por experiência própria, duvido dessa média. Ela parece ser muito maior. Por falta de dados, todavia, assume-se tal média para fins ilustrativos neste artigo.
Em cinco anos, de maio de 2010 a maio de 2015, o IPCA (o índice utilizado pelo Governo Federal para apurar a inflação) variou 38,07%. Traduzindo em números, se a parte lesada tinha direito a R$ 10.000,00 em maio de 2010, para que o pagamento daquela quantia, hoje, represente a mesma quantia de dinheiro (e compre, digamos, a mesma quantidade de arroz que se comprava naquela época), o valor da condenação deve chegar a R$ 13.807,03.
Nesse mesmo período (maio de 2010 a maio de 2015), a variação da TR foi de 3,66%, ou seja, praticamente 10 vezes menos do que a inflação do período.
Logo, se a parte lesante adimplir sua dívida com base nessa variação, pagará apenas R$ 10.366,05, acarretando o seu enriquecimento ilícito de R$ 3.440,98 e, por outro prisma, a usurpação da propriedade do jurisdicionado, em R$ 3.440,98.
No longo prazo, se mantida a aplicação da TR em detrimento de um dos índices que efetivamente reflita a inflação do período, a reparação de uma lesão pelo Poder Judiciário pode não ter qualquer efeito prático, pois a quantia recebida não terá mais qualquer “poder de compra”, pela absoluta perda de valor da moeda.
Nessa situação, e considerando o atual nível moral das instituições deste país, não seria de se estranhar que o Poder Público procurasse prolongar ainda mais as discussões jurídicas que sabe serem perdidas, com recursos protelatórios, para “ganhar dinheiro” com a desvalorização da moeda, o que viola mais um dos princípios insculpidos na Constituição Federal, o da Moralidade (art. 37, caput).
O disposto no art. 1º-F da Lei 9.494/94, que nada mais faz do que repetir o texto constitucional do art. 100, § 12, é, portanto, uma aberração jurídica. Aliás, frise-se que há indiscutível confusão entre “remuneração” e “atualização monetária”, duas figuras completamente distintas, consoante analisado acima.
[1] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=306105
[2] http://www.portaldefinancas.com/ipca_ibge.htm
[3] http://www.portaldefinancas.com/inpc_ibge.htm
[4] https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/corrigirPelaTR.do?method=corrigirPelaTR
[5] http://dados.gov.br/dataset/indice-nacional-de-precos-ao-consumidor-amplo-ipca
[6] http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/precos/inpc_ipca/defaultinpc.shtm
[7] Esse valor real a preservar é sinônimo de poder de compra ou "poder aquisitivo", tal como visto na redação do inciso IV do art. 7º da C.F., atinente ao instituto do salário mínimo. E se se coloca assim na tela da Constituição a imagem de um poder aquisitivo a resguardar, é porque a expressão financeira do bem juridicamente protegido passa a experimentar, com o tempo, uma deterioração ou perda de substância, por efeito, obviamente, do fato econômico genérico a que se dá o nome de inflação. (BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional da correção monetária. In: Revista de Direito Administrativo, vol. 203, Rio de Janeiro: Renovar, jan-mar 1996, p. 41-58)
[8] BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional da correção monetária. In: Revista de Direito Administrativo, vol. 203, Rio de Janeiro: Renovar, jan-mar 1996, p. 41-58